quarta-feira, novembro 03, 2004

Cenas de um cotidiano em Pernambuco


Por Beto Barraca

RECIFE -Ao transitar as inúmeras vezes nos ônibus que me levam à velha labuta, me deparo com cenas mui inusitadas. Muitas e muitas vezes tenho que viajar sob o julgo da oratória de fiéis evangélicos. São muitos os minutos de angústia, dos quais qualifico como dilacerantes, desconcertantes, horrivelmente impiedosas as palavras do irmão da fé.

Penso, como pensam outras pessoas: Vamos todos parar no inferno, tanto que não nos encaixamos nos padrões morais de nossos oradores.

Outras cenas me levam ao deleite, ao prazer de presenciá-las, escutá-las. São verdadeiras obras primas remando ao vento quente do nordeste do Brasil. Pérolas que participo com meu ouvido coadjuvante.

Belo dia entro no ônibus Barro/Macaxeira, veículo este que me leva a outro ônibus com destino ao distrito industrial no qual me acabo por oito horas diárias. De repente dou de frente com duas senhoras que tinham como destino os presídios da Ilha de Itamaracá. E começa o ato número um.

Ato 1
Aquela senhora morena, baixinha, de olhar simpático, típico dos meretrícios pernambucanos, começa uma conversa pitoresca acerca do que iriam fazer para aquelas bandas dos presídios da Ilha.

- Vou ver meu homem - diz a outra senhora, mais branquinha, de altura tão igual a outra.
- Primeiro vou lavar roupas depois me deito, mas só quando terminar a roupa - retruca a morena.
- Eu não, vou botar meu biquini, dar uma volta na praia e depois vou dar uma
furada. - Completa branquinha.

Aquilo tudo passava percebido pelos ouvidos dos que estavam na parte traseira do ônibus de Abreu e Lima. Confabulavam com extrema liberdade. Os detalhes eram contados abertamente. Tão abertos que descobri o que queria dizer a branquinha com a expressão "dar uma furada".

É isso mesmo que você pensou, “dar uma trepada com seu nego quente. Matar as saudades do seu amor fiel. Eram as minúcias dos encontros amorosos das amantes de criminosos solitários.

A vida tão aberta quanto as portas das Universidades do Amor da Região Metropolitana do Recife.

Recentemente encontrei Branquinha novamente. Fazia um sol escaldante às 06:48 h. Estava ela acompanhada de uma outra senhora e seu filho. Tomava café pequeno enquanto "furava" a fila do ônibus.

Entrei primeiro e de alguma forma não estava preparado para próxima cena inusitada. Mas ela fez questão de me colocar coadjuvante novamente. Eu e o Abreu e Lima inteiro, lotado. De um calor quase infernal, para aquela caixa vermelha que se transformava o Abreu, e ela entra.

Seios fartos, cabelos encaracolados, pele branca queimada de sol, o que chamamos de galega em nossas terras. Cafezinho no bico, abrindo espaço entre aqueles que estavam em pé aguardando a partida do ônibus, quando de repente a outra senhora fala em alto e bom som:
- Mas você gosta de café, num é?
- E então, sou tarada por cafezinho e por homi.

Não pude deixar de dar minha gargalhada interior e ficar agradecido por mais um dia de trabalho.


Beto Barraca é um amigo, historiador e proletário, mora na cidade de Jaboatão de Guararapes-PE

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