quarta-feira, abril 25, 2007

A Escola de Cho


Uma das coisas mais interessantes que está ocorrendo nas dependencias da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-RIO) é estar tendo aula com o professor José Bessa.

Ontem tive a oportunidade de ler o texto de sua autoria - A Escola de Cho publicado no Diário Amazonense e no seu site http://www.taquiprati.com.br.

Achei o texto muito bom por nos faz refletir sobre o que acontece no sistema educacional dos States. Vamos ao texto:

A ESCOLA DE CHO
Por José Ribamar Bessa Freire


Ele odiava a escola, que definiu como “um mundo de brutalidade”. Foi lá, na escola, que sofreu “um suplício de pequeninas humilhações cruéis”. Sentia-se “encarcerado, agachado, abatido, esmagado”, conforme depoimento que deixou por escrito. Por isso, revoltado, decidiu incendiá-la. Furou o cano de gás e tocou fogo no prédio de quarenta janelas, transformando-o numa fornalha. Depois, se suicidou.

Essa tragédia não ocorreu nos Estados Unidos, mas no bairro carioca do Rio Comprido, num colégio particular, que funcionava em sistema de internato. Américo, o aluno incendiário, era um pau-de-arara, vindo da roça, que vivia solitário, “sem falar com ninguém, cada dia mais enfezado”. Ele é um personagem do romance ‘O Ateneu’, de Raul Pompéia. O incêndio simbólico só aconteceu no papel. Mas sete anos depois, na vida real, o autor se suicidou numa noite de natal, com um tiro no coração.

“Eu tinha as pernas roxas dos golpes; as canelas me incharam”, conta o narrador, descrevendo os castigos, os bedéis, as aulas chatas, os exames, os boletins, o sistema de delação, a organização militarizada, o uniforme, a disciplina, a discriminação, a sineta tocando, o diretor violando a correspondência dos alunos. Américo, o caipira, fugiu daquele inferno, mas foi recapturado. “Olhavam todos para ele como para uma fera respeitável”. Foi aí, então, que decidiu incendiar o colégio.

Xerife da turma

No romance de Raul Pompéia, escrito em 1888, podemos encontrar algumas pistas para discutir a tragédia ocorrida nessa segunda-feira, no campus da Universidade Virginia Tech, nos Estados Unidos, quando o estudante sul-coreano, Cho Seung-hui, assassinou 32 colegas. Por que fez isso? Seguramente não foi porque é um “monstro calculista”, como berrou em manchete irresponsável O Globo, sugerindo que a tragédia teria causas individuais e não sociais.

Nos Estados Unidos, vira-e-mexe, tem sempre alguém cometendo assassinato em massa. O curioso é que o palco, embora já tenha sido um cinema, um shopping e até um prédio da NASA, na maioria das vezes é uma instituição de ensino. Em 1966, 15 mortos e 30 feridos na Universidade do Texas. Em 1999, 13 mortos na Columbine High School. Nesse momento, diante da onda de ameaças, muitas escolas americanas fecharam suas portas, enquanto buscam alternativas de segurança.

Por que essa escolha preferencial pela escola? Qual a responsabilidade da instituição na formação desses “monstros”? O especialista em segurança, Bene Barbosa, presidente do Movimento Viva Brasil, acredita que essa preferência acontece porque nas universidades as pessoas estão desarmadas, o que dá a certeza aos assassinos de que não haverá resistência. Tal análise sugere que a solução seria armar alunos e professores, já que o lobby da indústria armamentista não permite desarmar a sociedade americana.

Parece, no entanto, que o buraco é mais embaixo, como se pode concluir do debate entre vários professores que fazem parte da comunidade virtual UERJ XXI, entre os quais Armando Tavares, João Andrade, Henrique Sobreira, Gilberto Moraes, Ítalo Moriconi e Aníbal Moura, esse último candidato declarado a reitor.

Com ironia, o professor Andrade sugeriu que cada sala de aula guardasse uma pistola e um fuzil AK carregados, em gaveta fechada com uma chave em poder do professor, outra cópia em poder de um aluno, denominado de "xerife da turma" ou ainda "fuhrer local" e uma terceira com o "vice-fuhrer". Recomendou ainda que para manter o princípio da transparência, as armas seriam compradas através de licitação publica e submetidas a testes prévios de facilidade de recarga, potência destrutiva e ergonomia.

Aníbal Moura, que trabalhou quase cinco anos em universidades nos EUA, escreveu: “Lá a humilhação é quase institucional, com mecanismos de exclusão abomináveis. Lembram sempre que você não é um cidadão americano e que, independente do trabalho que está realizando, você é inferior. O imigrante se esconde, apaga tradições, prefere estabelecer relações subalternas. Há enorme violência neste processo, que conta com a humilhação como o seu momento de síntese. Você não perdoa a humilhação, engole seco, dói por dentro. Continuo odiando o que Cho fez, porém considero que é na imagem do mundo que ele se tornou possível”.

Cho, um scholar

Cho saiu da Coréia com oito anos. Da mesma forma que Américo, de nome emblemático, Cho era um menino quieto, calado, embora não agressivo. “Ele não falava direito, mas era bem comportado”, disse o avô. Alguns achavam até que era autista. Acontece que a escola americana, onde estudou, desconhecia e desprezava sua língua materna, seus valores, sua cultura, impondo-lhe o inglês, uma língua que não dominava. Por isso, não falava, sendo discriminado e “olhado como uma fera”.

“No cruel sistema de ensino dos EUA, em que as crianças são divididas entre “winners” (vencedores) e “losers” (perdedores), Cho era um fracassado”, lembra Bárbara Gancia em sua coluna na Folha de São Paulo. O grito desesperado que ele deixou no manifesto multimídia nos dá alguns elementos sobre a necessidade de repensar o modelo vigente de escola. O Globo se limita, porém, a condená-lo, publicando o depoimento sob o título “Testamento de um Monstro”, em letras garrafais:

“Vocês ferraram meus irmãos e irmãs. Decidiram derramar meu sangue. Me encurralaram e me deram apenas uma opção. Vocês sabem o que é sentir quando cospem no seu rosto e o lixo é empurrado por sua garganta abaixo? Vocês destruíram meu coração, violentaram a minha alma e queimaram a minha consciência. Vocês sabem o que é ser humilhado e empalado num cruz? Graças a vocês, eu morro como Jesus Cristo, para inspirar gerações de pessoas fracas e indefesas”.

Colecionei depoimentos dramáticos de índios que descrevem como a escola monolingüe tentou devorar suas identidades, discriminando seus saberes, suas línguas, suas práticas religiosas, sua música, seu jeitão de ser, chegando a levar alguns ao suicídio. Discuti essa questão em 1979, num artigo no jornal Porantim, intitulado “A Escola destribaliza, mata e come ou como matar índios com giz e apagador”. Lá, cito o antropólogo belga Marcel D´Ans, que em “Linguagem e Patologia Social” relaciona a cultura e a língua materna com o psiquismo dos indivíduos, criando a categoria denominada ‘souffrance’ para explicar certas alterações funcionais.

A ‘souffrance’ ocorre quando alguém é obrigado a abandonar sua cultura e língua materna, num contexto em que elas são discriminadas: “uma política de repressão cultural, cuja forma mais visível é impedir o uso da língua materna, gera um desespero que pode chegar, nos casos mais graves, a condutas violentas e/ou suicidas”. Não se trata, portanto, de uma anomalia ou doença individual. Cho não é um monstro. Monstruosa e doente é a sociedade que o produziu, presidida por George Bush, a quem O Globo não chama de “monstro”, embora seja responsável por mais mortes do que todos os assassinos em massa na história dos Estados Unidos

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